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Este site deseja, acima de tudo, provocar a reflexão humanística através da literatura. Just another WordPress.com site

  • O olhar sobre a cidade

    Quando a vejo assim, meio de longe, observo o sol que a acompanha, iluminando por vezes, as janelas que se abrem ao alto. Assim, majestosa, envolvente.  Não olho as suas sacadas da frente, próxima à praça, nem seu interior valioso. Poderia falar de sua porta quase solene, que se abre lentamente, como num filme, revelando aos poucos o seu interior, a escada de granito, o salão de leitura, o acervo suntuoso e raro, as estatuetas, as figuras, as pinturas e suas inúmeras salas e estantes abundantes. Poderia falar de suas sacadas, cujos olhares para a rua e à praça principal, denotaram por tanto tempo a descoberta de um mistério, que só se realiza em seu interior. Talvez apenas a representação da vida. Mas, hoje quero observá-la de um ponto estratégico, onde a avisto aqui debaixo, um pouco mais próximo da lagoa, ali pelo cais. Vejo-a de costas, mas sempre imponente e generosa. Parece que nos observa de cada canto que a vemos. Neste lado do sol, sinto que as paredes refluem, como as ondas no canal, absorvendo o calor e devolvendo a luz, plenitude que se mantém nos vitrais e revelam a beleza de seu porte. Entretanto, sinto que não faz parte da cidade. Não, não pertence ao canal que se desdobra azul escuro, lá na frente. Não pertence ao cais brilhante num dia radioso, ao povo que passa por ela, entretido em conversas ou atribulado em suas tarefas. Nem aos vendedores de peixe, nas bancas em dias de pesca, nem aos operários oriundos das lanchas, os ilhéus que se acercam dela, absortos com seus barcos, suas compras, seus encontros, suas despedidas. Nem aos alunos que passam, vindo de escolas distantes, visitando a cidade. Nem aos jovens perdidos em divagações, olhando ao longe a lagoa, fumando baseados nos entardeceres. Há um quê de nostalgia e beleza. Não, ela não pertence à cidade. Na verdade, a cidade pertence a ela, a cidade é acolhida por suas sombras, luzes, beleza, sobriedade e imponência, e todos nós por ela somos abrigados. Por todos sentimos a sua força e presença constante e é nela que depositamos nosso futuro e nossas aspirações de beleza, literatura, ciência, história e conhecimento. Nela que Rio Grande se inspira. Não nasceram juntas, mas sabemos que ela a abraça desde sempre. A Biblioteca Rio-grandense é o símbolo mais intenso em pertencimento de um povo, do que qualquer outra entidade. É ela, que envolve, acolhe e derrama alegria e vida à cidade. 

    Sinto que aos nos observar, há tanto tempo e do alto de sua sabedoria, inspira de alguma forma até aqueles que não a veem. 

  • A faina na brasa

    Animais dão-se as mãos nas campinas
    verdes, que se espraiam olhar afora.
    Vozes que flutuam em zumbidos longínquos
    Homens se agrupam na prática eufórica.
    Quando eles chegam de mansinho,
    deixam os pastos repousar
    Deitam as arestas de seu sono
    e dormem em flores sem vicejar.
    Humanos acedem fogueiras
    Perpetuam fogos, parecem lutar
    por vitórias que chegam com os arreios
    e ferramentas que lá vão provar.
    No dia da desova das paixões
    Agitam-se, desesperados na rotina
    e animais afastam-se, em vão
    Da brasa que lhes cede a alma ferina.
    Homens violentam seus bordões
    Riem, na luta da guerra à vida
    Gritam, rudes, na faina da brasa
    A morte que chega, sem saída.
    Animais caem ao relento
    Esbaforidos, sedentos e sofridos
    Olhares perdidos nas vagas madrugadas
    que anseiam, mas que nada
    Se sonham, nem sabem decifrar
    A morte é certa, a berrar
    na brasa ardente escaldando as carnes
    O sangue transbordado na terra ferida

    A morte é certa, a berrar

    Homens dão as mãos nas campinas
    Entoam canções e gritos de guerra
    Vibram pelo sangue que mediram
    nos sereno da fatigada terra.
    
    Animais fracos, mortos em vida
    na luta do rodeio desonesto
    onde o forte esquece o fraco no labirinto
    e a vida se perde no sangue derramado.






  • Sobrevida

    Quisera fugir das vidraças que estilhaçam a vida. Quisera fugir das praticidades, do senso comum, do pensamento único que dissolvem a sanidade. Das paredes que envolvem, dos muros que escondem, das grades que cerceiam os espaços. Desviar o olhar da lâmina que decepa árvores, do sangue escorrido na própria seiva, dos desertos se formando, da natureza enferma. Quisera me envolver na música, na poesia, na arte, na literatura, no brilho dos olhos de quem observo, dos tinidos dos pássaros, dos rugir das ondas, do farfalhar do vento. No sabor da brisa matreira sob a árvore. Quisera nada ouvir. Sentir o silêncio nos poros da alma. A batida suave do coração. Os rios desvelando-se em fluídos pelo corpo, sintetizando a vida num vaivém silencioso. Uma alma quase escapando do corpo, que levita e se acolhe a si mesmo. E assim, tentando sobreviver à barbárie. 

  • Onde encontro a Páscoa?

    Que vejo nas praças, nos parques, nas ruas, nas vielas empoeiradas, nos becos encardidos, na tristeza dos olhares, na fome revisitada, nos céus de abandono, no mar distante, nas ruas sem fim.

    Que vejo nas calçadas ardentes de outono, resquícios de dias quentes da estação passada? Que vejo de chinelos velhos em pés sujos, de andrajos soltos pelas pernas finas e desajeitadas. Que vejo neste balé disperso e deformado da mulher que grita pelo centro da praça? Que pula, dobra os joelhos para o monumento, retira os livros para a doção e os segura como um troféu. Fala alto e forte ante olhares soturnos, abandonados em telas brilhantes ou desconcertados pela loucura, como contagiosa fosse. Apesar das sombras do início da noite, ela continua lá, explanando um discurso que é para si mesma. Um casal de turistas, provavelmente, visita o monumento, tira fotos da criança, observam por um momento a cena e prosseguem na tarefa, convictos de que não lhes fará mal. 

    Que faço eu para cercar-me de cuidados, aproximando-me devagar e desistindo ante a insanidade suprema. Sorrio apenas e por um momento, tenho a impressão de que sou correspondido. Mas não faço nada, tal como os outros. Apenas não me afasto, nem fico alheio ao que diz, talvez absorto em divagações. Como agora, neste momento. 

    Que vejo nos templos, nos encontros religiosos, nos espaços de oração e fé? A morte e o dilaceramento humano de Cristo, antes olhares chorosos e sensação de luto. Até quando? Até a próxima conversa com o amigo que classifica de invisível o gari, da mulher que detesta o motoboy? Da sensação de náusea do bêbado que atravessa a rua? Do professor considerado comunista, e, portanto, um desclassificado que quer a ruína do País? Do adolescente drogado, presumível ameaça às famílias de bem?

    Que vejo neste mundo saudável que deseja a transformação, a Páscoa, a travessia para um mundo interior espiritualmente pleno? Que vejo nos recantos em que o uísque derrama como água potável, os riscos brancos evoluem nos tampos de mármore inchando as narinas e os negócios são acordados, jurídica, política e socialmente por estes senhores de bem, que abominam o bêbado, o drogado e o comunista. Quantas vezes vão matar Cristo e chorar por suas feridas e sofrimentos?

    Procuro a Páscoa e não a encontro. Talvez, dentro da mulher da praça, do andrajoso e sujo das ruas, do bêbado, do professor. Talvez dentro de mim, de ti, dos que amam os seus, o próximo, o que está mais próximo e do próximo que vemos por aí, sem censura, sem preconceito, sem racismo, sem ódio. Só empatia e amor. 

  • O futuro do mundo

    Final de tarde. Sol tecendo últimos raios, misturando luzes e sombras, brilhos e tons azuis escuro. Noite que se anuncia cálida e sinuosa. Um sussurro aqui, um gemido lá, mais forte. Latidos ao longe. Não se sabe se nas sombras tudo fica mais fácil. A noite acorda, a tarde dorme. Gatos serpenteiam as cercas e quase não se os vê. Tons cada vez mais escuros. Luzes esparsas. Cidade que se afasta. Mas que some. Quisera sair deste barco e voltar para as esquinas, mesmo escuras e vazias, mesmo ouvindo os sons esquálidos da noite que se aproxima, mesmo sentindo arrepios na espinha, mesmo vendo tons cada vez mais confusos. Quisera sentir os meus passos, pés se mexendo, calçado espetando pedregulhos, esfriando no sereno das vielas embarradas. Quisera voltar. Mas seguir é alvorada. Seguir é o necessário e único. Não seguir é o poente. É interromper o fluxo. Seguir é sobreviver. Quisera tirar os pés do fundo do barco, deitar-me ao relento, sentir o cheiro da relva, da grama recém cortada, do parque iluminado em prata, nas noites intensas de verão. Quisera sentir-te tão perto, ouvir tua respiração quase sussurro, teu suspiro de paz quase morte, teu abandono do corpo quase alma. Quisera sentir teus lábios, tua voz, tuas dores e alegrias, teu sorriso e teu choro. Quisera estar contigo e experienciar tuas buscas. Mas estou aqui, neste barco que se afasta da cidade e do rumo. Que se afasta do porto, da fronteira, do país. Quisera ser só um ser comum e não um ativista maluco. Que o mundo caia aos meus pés e a vida doure, pincele e vigie teu futuro. Que o meu seja a descoberta e o teu, a plenitude. Que eu me salve, mas antes de tudo, que chegue ao destino. Aquele que procuro, não o que procuramos, que desejamos, que sentimos. O futuro que não é meu, nem teu. O futuro do mundo.  

  • Então, me explica…

    Nem sempre me lembro de ti. Nem sempre me pergunto, porque te foste tão cedo. Nem sempre me envolvo nas histórias que contavas. Nem sempre me enfrento te olhando no espelho. Um espelho que parece muito comigo. Um espelho onde te imagino às vezes, caminhando ao nosso lado pelas ruas quase desertas da cidade, no feriado de Natal. Lembro-te de sapato preto, de verniz, bico de pato e salto fino. Do vestido azul e a bolsa de mão. Mas lembro mais do aconchego de tua mão na minha. Da alegria de meu pai ao teu lado, como um guia, um líder que nos levava à festa dos presentes. Lembro do guaraná, do quindim que sempre nos aguardava no imenso salão do clube. Lembro da expectativa dos prêmios. Dos palhaços, das músicas, dos mágicos. Lembro dos presentes. Uma boneca para minha irmã, um cavalo branco de gesso para mim. Mas lembro especialmente do brilho dos teus olhos, da emoção que passavas, que tornava nossos momentos intensos e felizes. Da alegria que sublinhavas com teu sorriso sincero. Tu eras assim, voltavas desenhando sonhos, torcendo o salto no paralelepípedo enquanto esperavas o táxi e visitavas as lojas enfeitadas para a festa. Por isso, pergunto, traçando um paralelo com a música “Feminina” de Joice , me apropriando de alguns versos, assim alterados: “Ó Deus, me explica, me ensina, me diz o que é ser mãe? Não é no vestir, no gesto, no olhar, é ser mãe em qualquer lugar. Então me ilumina, me diz como é que termina? Termina na hora de recomeçar. Costura o fio da vida só pra poder cortar. E este mistério estará sempre lá. “ Por certo, tens todas as respostas, pois Deus já te criou sabida. Agora no espelho não estás mais. Não te vejo em meus olhos, nem nos sonhos, nem nas ruas desertas de outrora. Teu lugar é tão íntimo, que não há como explicar. Ficas muito mais do que em minha memória. Fazes parte de minha vida. Do meu ser. Do me estar no mundo. Do homem que me tornei. Por isso mãe, às vezes, me pergunto o que somente tu sabes a resposta. Mas foste tão cedo. COMPARTILHAR

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  • Loiralice, o Opala vermelho e o futebol

    Eu e meu amigo Saulo inauguramos nosso desejo de assistir um grande jogo de futebol. Acostumados com os times pequenos de nossa cidade, assistir Grêmio e Corinthians era uma verdadeira odisseia. Uma marca em nossa carreira de torcedores, que na época, antes das desilusões derradeiras, éramos fanáticos. 

    Saulo era um sujeito estranho. Gente boa, grande amigo, sempre disposto a apoiar em qualquer situação difícil, mas tinha uma conduta peculiar que  chamava à atenção. 

    Eu não conseguia convencê-lo de que as suas atitudes eram inadequadas, pelo menos, pois sempre dava um jeito de dar outro rumo à conversa.

    Uma de suas extravagâncias, era a mania de interpretar papéis que destoavam de sua rotina. Se participávamos de uma reunião de jovens da igreja, ele demonstrava estar em êxtase, perdido nos trâmites iluminados do divino, ascendo à postura angelical, quase um santo. Mas quando estávamos juntos, toda a encenação se dissolvia e se transformava no jovem de classe média, com pouca espiritualidade e muita disposição para ser o que realmente não era. 

    Outras vezes, convencia a si mesmo, que era um intelectual. Participava de palestras de quaisquer assuntos, pois a todos tirava de letra, segundo seus pensamentos egocêntricos. Metia-se em polêmicas doutrinárias, ideologias, filosofias e demonstrava uma facilidade extrema para cercar-se de neologismos, sofismas e saídas rasteiras, onde se locomovia como um larápio nas noites escuras, deixando a todos de boca aberta. Às  vezes, até acreditava que ele tinha razão. Pelo menos, até cair a ficha.

    Mas voltando ao futebol, o nosso assunto a partir daquele momento, passou a ser o jogo ao qual assistiríamos de camarote. Já imaginávamos o povo se acotovelando nos metrôs, os carros pipocando nas avenidas, milhares de pessoas nas passarelas, vestidas em uniformes, tingindo de azul preto e branco, numa mistura de cores que dosavam os matizes dos times em disputa. 

    Víamos também nossa imagem, refletida em nossa mente fantasiosa. Eu, vislumbrando o cenário, imaginando uma história a contar, olhares argutos, coração e mente atentos, ouvindo o rugir da torcida e o trovoar dos foguetes, na entrada dos jogadores.

    Ele, ao meu lado, levantando a todo o tempo, antes mesmo de comemorar qualquer coisa; cabelo curto, pois se considerava um tipo formal, nariz adunco e olhar investigativo, numa performance nova, talvez até torcendo pelo inimigo. 

    Mas eram só conjecturas, pois ainda estávamos em nossa cidade natal. 

    Ele chegou com a novidade, de que iríamos num carro novo, tinindo, zero quilômetro, um Opala vermelho, com todos os acessórios considerados de luxo para a época. Disse-me que havia alugado o carro, pois não iríamos no ônibus de excursão, com àquela gente cheirando à cachaça, misturada a desodorante Mistral. 

    Sorri e percebi que o Saulo havia incorporado outro papel.Tentei dissuadi-lo da ideia, pois não tinha muita prática em direção, mas ele me saiu com uma proposta mais absurda ainda: 

    — Não, não, nada disso. Teremos um motorista.

    — Um motorista? – perguntei intrigado. 

    Ele pousou aquela mão enorme sobre o meu ombro e concluiu, confiante.

    — Deixa comigo. Amanhã é o grande dia.

    E assim foi. No dia seguinte, estava à espera, olhando pela vidraça. Um sol forte produzia flashes no para-brisa do imponente opala. Olhei para direção para verificar se havia o tal motorista e qual minha surpresa, uma morena depositava as unhas vermelhas no volante, fitando-me de uma maneira tão incisiva, que parecia exigir que eu entrasse, sem fazer perguntas. Obedeci, sentando no banco detrás, largando a mochila e olhando surpreso para o meu amigo, que virava o pescoço comprido para trás, perguntando se eu lembrava da Loiralice.

    Ela atravessou o olhar pelo retrovisor, fuzilando como defesa, antes de qualquer investida.

    Claro que me lembrava, no meu machismo pós-adolescente, Loiralice era apenas a morena gostosa, das festas do colégio, que segundo as conversas de corredor, já havia conhecido a intimidade da maioria dos guris. Tinha esta qualidade, mas a profissão de motorista era uma novidade, pelo menos pra mim.

    Hoje, ela já passava dos trinta, bem mais velha do que nós, já que na época da escola, ainda estávamos no primário e ela já avançava no ginásio, se bem, que quase a pegamos, no bom sentido, porque via de regra, repetia de ano. 

    Loiralice não era do ramo. Estudar não era sua melhor aptidão. Quem sabe, como motorista, revelaria dotes desconhecidos. Devia dar uma chance, afinal, como ser preconceituoso, só por ser a Loiralice? Pois Loiralice arrancou de primeira. 

    O carro não corria, deslizava. Era uma suavidade só, uma sensibilidade, uma coisa feminina, que norteava seus gestos, suas mudanças, seus retornos ou paradas em sinaleiras. Sutil, sóbria, tranquila. Cada adjetivo que eu pensasse se encaixava nas mãos de Loiralice. 

    Ela obedecia as regras da direção com tanto cuidado e recato, que mal desconfiávamos que era a mesma Loiralice que conhecíamos. 

    Meu amigo sorria, satisfeito, boca grande, dentes irregulares, nariz quase batendo no queixo. Achava que fizera uma ótima aquisição.

    Loiralice era excelente motorista. Consciente, cuidadosa, preocupada com os animaizinhos soltos na rua, com os velhinhos que atravessavam descuidados, com as meninas das escolas, passinhos amiúde, ocupadas em suas histórias, quem sabe os cuidados com os cadernos e as primeiras paixões da infância. 

    E vá adjetivos à Loiralice. 

    Loiralice era assim, quase uma mãe. Logo ela, tão exuberante, voz altiva, boca bem desenhada e pintada de vermelho sangue, olhos delineados, com aquele traço preto que quase atravessava a fronte em direção à orelha.

    E os trajes? Loiralice não tinha recato, nem qualquer censura. Usava os decotes como arma de sedução, abusava das saias curtas, revelando pernas bem torneadas e tão lisas, que tinha-se a impressão de que qualquer objeto deslizaria por elas infinitamente.

    Assim era Loiralice: esta faceta sensual bem mais conhecida. 

    Mas agora, parecia outra pessoa. Tal como Saulo, que se metamorfoseava em distintas situações, ela agora se investira na mulher sensata e cumpridora dos deveres e das leis.

    Entretanto, havia um senão, um detalhe que envolvido naquele mar de novidades, passara desapercebido: Loiralice estava lenta demais. O carro não passava dos sessenta. 

    A cidade parecia nos puxar para dentro, ao invés de nos afastarmos, como naquela poesia em que as ruas acenam, despedindo-se da moça no trem, as casas ficam distantes,  os automóveis, as crianças, os cachorros de rua, os gatos despreparados, tudo se dilui na distância.
     

    Nós, ao contrário da moça do trem, éramos atraídos para o interior da cidade e não para a zona rural. 

    A sensatez de Loiralice deixava que o mundo passasse por nós, até o ônibus de excursão, com centenas de torcedores pendurados às janelas, acenando bandeiras, soprando instrumentos, batendo tambores e gritando. 

    Aos poucos, as latas velhas do ônibus desapareciam na poeira da estrada e nós ficávamos, ali, à mercê de Loiralice, quase uma traição de nossos desejos mais profundos. 

    Nos olhamos de soslaio, respiramos fundo, gaguejamos, resmungamos alguma coisa, fizemos mímica e nos entendemos com profusão. 

    Decidimos chamar a atenção de Loiralice, a principio com sutileza, com delicadeza para não ofendê-la.

    Começamos informando sobre a potência do veículo, que gastaria muita gasolina, caso a velocidade exigida pelo motor estivesse aquém e que por fim, demoraríamos muito tempo e ela fatalmente se cansaria demais.

    Ela então, inesperadamente, parou o carro, numa freada brusca. Não era a freada de Loiralice.

    Ficamos em silêncio absoluto. 

    Não questionamos, não abrimos a boca, mas nossos corações palpitavam desenfreados, um dizendo para o outro, que o cruzamento havia chegado. 

    Loiralice iria desfazer o nó. Ou aceitava a nossa proposição ou … Não sabíamos a sua reação.

    Quando íamos abrir a boca, soou aquela voz sonora, melodiosa e forte de cantora de pagode:

    — Olha aqui, pessoal. O meu trato é esse. Dirigir até Porto Alegre. Mas eu não arrisco a minha vida. Se querem correr, se querem se matar, que vão sozinhos. Tenho dito. 

    Loiralice tinha desses caprichos, como as expressões antiquadas de políticos. 

    Tentamos então convencê-la, argumentamos de todas as maneiras, imploramos até, mas ela era radical e definitiva. Desceu do carro, dizendo que voltaria de ônibus.

    Ficamos paralisados por um momento, assistindo-a dirigir-se até uma parada que ficava alguns metros adiante. 

    Então, num ímpeto, corremos até ela e pedimos que voltasse, aceitaríamos, com reservas, é claro, as suas determinações.

    Ela aceitou, arrumou o penteado, ajeitou o vestido amarelo-queimado nas nádegas, acertou o passo na sandália dourada e voltou para o carro. Então, prosseguiu suave, sutil, deslizando no asfalto, delicadamente e sendo ultrapassada por todos os meios de transporte imagináveis, desde caminhões e ônibus até carroças e bicicletas. O cúmulo do desespero foi quando um corredor, que avistamos na saída da cidade, passava por nós e acenava satisfeito. Cuspimos com raiva pela janela, ouvindo um trovoar de palavrões.

    Com o passar do tempo, tanto eu quanto o meu amigo, suávamos de ansiedade. Então, perguntei porque ele não dirigia, já que eu não poderia, pois não tirara carteira. 

    Ele confessou que nem sabia dirigir, o que confirmou mais uma de suas fantasias. Não sabia se me indignava com Loiralice ou com ele. 

    As horas passavam. No rádio, comentavam sobre trio de arbitragem e nós nem tínhamos chegado ao paradouro, um local que praticamente divide o percurso. 

    Em dado momento, Loiralice desviou o automóvel da rodovia, pegando um atalho. Perguntamos atônitos para onde ia.

    Ela pairou o olhar em nossas fisionomias desesperadas e afetuosa, comentou: 

    — Vamos fazer um lanchinho, não?

    — Não! – gritamos em uníssono. 

    Mas fizemos o tal lanche e assistimos a entrada dos dois times pela televisão do bar à beira da estrada.

  • A percepção da subjetividade na filosofia e na literatura

    Com a modernidade, houve gradativamente uma mudança de paradigma na literatura filosófica e em muitos aspectos da história da humanidade. Por exemplo, havia a crença de que o sentido das coisas decorria da essência do objeto. A partir de René Descartes, que contribuiu grandemente para a história das ideias, ocorre a relevância do sujeito, ou seja, o sentido passa a estar na consciência do sujeito. Essa nova maneira de pensar, este novo olhar filosófico implica em grandes transformações nas artes, nas ciências, na cultura, enfim, no novo mundo que se insurgia.
     

    Na literatura abrangente da filosofia, pode-se dizer que num primeiro momento, no que concerne à época antiga e medieval, que todo o pensamento estava centrado no objeto.

    Na modernidade, há a inserção do sujeito, mais do que isso, a ascensão do sujeito dando sentido à consciência, contrariando à supremacia da essência do objeto. 

    Finalmente, na filosofia contemporânea, afirma-se uma intersubjetividade, ou seja, a relação entre sujeito e / ou objeto. Neste caso, o relacionamento entre indivíduos ocorre no campo da liberdade de ação, o que implica a negociação com o outro. 

    Mas voltando ao início, houve nos primeiros momentos da filosofia, uma passagem do paradigma do objeto para o do sujeito. Com a ênfase na subjetividade, descobriu-se que tudo que nos cerca existe além da percepção do objeto, porque na verdade, o objeto não existe apenas em sua essência, sem que haja uma ligação permanente, ou seja, uma relação com o sujeito. O sujeito é que tem a faculdade de transmitir o conhecimento de alguma coisa (objeto), através de sua percepção. O filósofo passa a olhar para a sua própria consciência e a supremacia passa a ser do sujeito.

    Neste casos, ocorre uma transição da objetividade para a subjetividade. 

    Na Antiguidade, o homem contemplava a natureza e na Modernidade, o homem quer controlar a natureza através da ciência, pois considera ter autonomia no processo de construção do seu conhecimento. Acredita-se que o mundo não é algo dado, passivo, mas sim algo construído.
     

    No literatura como arte, houve a ascensão do realismo e do naturalismo. Aqui a  questão da racionalidade ocorre por um indivíduo que se impõe sobretudo como um sujeito racional seguindo a teoria positivista. Deste modo, identifica-se uma ênfase extrema no sujeito, como se este surgisse por acaso, onipotente, com um olhar absoluto para a história.

    Na verdade, o sujeito não surge, ele é construido através de sua formação, com a tradição, o relacionamento com outros indivíduos, expressando a sua realidade através de sua origem local, espacial e participando da história. 

    O homem tem uma história que o precede com uma cultura, uma linguagem e os sentidos da existência. 

    A literatura expressa a compreensão do mundo através dos sentidos, do subjetivismo e embora no realismo, que propõe uma leitura positivista, percebe-se que o objetivismo não tem primazia sobre o subjetivismo, nem o inverso (muito menos neste caso), porque o sujeito se funde na linguagem. A objetividade não subverte o sujeito. Na verdade, os dois coexistem perfeitamente. Verifica-se esta dualidade em Machado de Assis, Gustave Flaubert, Tolstói, Eça de Queiroz, para citar alguns. 

    Conclui-se, deste modo, que embora o realismo aborde temas com um tratamento objetivo da realidade, há na literatura essa integração onde o sujeito é destacado pelo seu estar no mundo, como ser participante da história.

  • Doce relação

    A palavra é o desvendar de emoções, a representação fonética e gráfica de nossa simbologia pessoal e compreensão do mundo. É pela palavra, portanto, que agimos e interagimos com o outro. É a arma que garante nossa sobrevivência como ser humano. Entretanto, às vezes, ela é impossível de ser registrada, falada e ouvida e há momentos que seu significado fica desordenado e oculto, sem que possamos manifestar o mundo que a contém. 

    Por essa dificuldade, lembrei da interação que o paciente possui com o seu dentista, enquanto este realiza o seu trabalho. 

    É provável que haja centenas de artigos falando sobre o relacionamento entre o odontólogo e seus pacientes, entretanto, deve haver também muitas maneiras de tratar o assunto, pois a sensibilidade e o ponto de vista de cada um difere segundo a posição que exercem em determinada circunstânca, ou seja, de médico e paciente. 

    Por exemplo, há a observação do dentista sobre o seu paciente e há a percepção interna do paciente, coisa que raramente é compartilhada entre os dois. 

    Fico me perguntando o que pensa o dentista, quando conversa conosco, enquanto ficamos com a boca aberta, olhos arregalados como se estivéssemos no extase da morte e algumas lágrimas surgindo inquietas até o canto da boca. Dobra-se as pernas, estica-se os dedos dos pés, mexe-se as mãos, embora seja imprescindível ficar imóvel com a boca aberta e os olhos à deriva, sem ter a quem ou a quê olhar. 

    Na verdade, olha-se para o dentista, no caso daquele que fica em pé e mira diretamente em nossa boca e por mais que nos esforcemos em desviar o olhar, ficamos à mercê daquele exame que investiga nossas entranhas, como um detetive atento a qualquer desvio de conduta de nossos dentes desaparelhados. Sentimos sua presença próxima, suas mensagens para que fiquemos de boca aberta (boca grande, eles costumam dizer), mesmo que nossa arcada seja pequena e dificulte qualquer abertura maior, produzindo uma câimbra, como se o maxilar fosse desabar em nosso pescoço e a boca se espichasse como numa obra de Picasso. Então, movimenta-se as pernas novamente, coloca-se um pé sobre o outro, as mãos segurando a poltrona e, algumas vezes, uma segura o sugador, o que produz uma exaustão como se passássemos os 90 minutos do jogo de futebol, defendendo a bola como um goleiro precavido. 

    Mas lá vai aquele surfar de ferramentas em nossa boca, um desafio aos ouvidos, como se o ruído ensurdecedor da broca latejasse dentro do cérebro, atingindo nossas percepções salivares (se é que isto existe), dando aquele arrepio de giz riscando o quadro. Para completar o quadro, a inserção de algodão e gases, a resina e outros materiais de acabamento, sendo moldados, lixados, examinados, molhados e a boca enchendo de água, como se o barco naufragasse e impossibilidade de vir à tona, tal qual a vontade de vomitar sem poder expelir o material gosmento que nos invade a garganta. Sem falar nas agulhas de anestesia e os pequenos cortes, quando necessários. Então nossas mãos se agitam e tem-se a impressão que o cirurgião-dentista tem um certo prazer, como se a tortura fosse inerente ao trabalho. 

    Por momentos, imagino que ele olha para o lado, esboça sorriso irônico, quase psicopata e volta-se para o paciente, dobrando o seu corpo sobre ele e pergunta: “tudo bem?”. Mas como responder, segurando o sugador, a outra mão enfiada num canto da poltrona e a boca escancarada, cheia de algodões e a sensação de que daqui a pouco, o mundo acaba. 

    Ainda há os ruídos do lazer, provavelmente colando a resina ou outro material adequado à restauração. Aquele cilindro empurrando a dentadura, produzindo um som metálico e intermitente, o qual nos deixa na expectativa de mais um, mais dois, graças a Deus, acabou e fechararemos a boca, mas o cirurgião espera mais um pouquinho. Certamente, com um sorriso satisfeito. Só mais um pouquinho para a coisa dar certo. 

    Claro, que não é bem assim, ou melhor, nada acontece deste jeito. Mas a fantasia do paciente é a de quem se submete à tortura, completamente indefeso, sem a sua única arma, que é a palavra. No entanto, o cirurgião-dentista deve ter várias histórias a contar, inclusive essas de pacientes que paralisam, alarmados com o olhar intenso sobre suas cabeças e perdidos esperam ansiosos que as horas passem e o processo termine. Uma interação interessante, no nível de pensamento. A única arma do paciente, que é a palavra, lhe é impedida pela situação, mas sabemos que tanto um quanto o outro possuem o mesmo objetivo, embora cada qual o atinja de uma maneira. Que fazer? Coisa do ser humano. 

  • Nem sei

    Nem sei o que procuro e se o faço, é de alguma forma despropositada. Quando o sol aparece, assim de mansinho, depois de uma enxurrada, tenho a impressão de que a vida recomeça. Mas não de todo. Algo se perdeu. Talvez na calçada, nas vielas embarradas, nos bueiros abertos, no desague lento da chuva. O que sei é que o céu abranda e uma nuvem pequena e absorta é absorvida de algum modo pelo vento, que a distrai, fazendo-a desaparecer. Olho para o céu e observo a cor insólita, acinzentada, prenúncio da volta descabida da chuva. Nem sempre o recomeço é a volta da bonança.